domingo, 11 de março de 2007

Era uma vez Maria...Um estudo de caso

Autora: Erica Gomes Pontes (*)

Meu primeiro contato com Maria, se deu no início dos ventos de Abril de 2002, em um dos 7 núcleos destinados à assistência à criança a ao adolescente no município de Divinópolis/MG.
Logo de início, é preciso ressaltar a característica central na qual o encaminhamento da criança é feito: “necessidade de terapia familiar”.
A princípio, não consigo focalizar nenhum tipo de demanda que acarretasse atendimento psicoterápico em Maria, que desde o primeiro momento em que debruça sobre mim seu olhar, me procura e me interpela constantemente em sua vontade de “conversar e brincar” comigo. Eu então, me disponho a ouvir aquilo que ela deseja falar.
No que concerne ao início do tratamento psicoterápico infantil, é importante buscar estabelecer contato com as figuras parentais, nos moldes de uma entrevista clínica (já que o objetivo dessa entrevista ou entrevistas é entender o motivo da procura de consulta e o tipo de demanda: procurar saber se a criança sofre, formar uma idéia das relações do grupo familiar, saber da história da criança, seu desenvolvimento, sua rotina no dia-a-dia, sua relação com seus pais, seus irmãos, seus amigos, e seu comportamento na escola.), naquilo em que se concebe de extrema importância o lugar ocupado pelos pais na análise infantil, contudo, o mesmo não se efetivou devido as constantes ausências durante o transcorrer de todo o processo analítico. Decido então, dar andamento aos encontros com a criança, por compreender que a ausência dos pais implicaria em seu consentimento à proposta terapêutica.
Maria é uma criança de 8 anos de idade e cursava a 2ª série do ensino fundamental em uma escola municipal. A criança vem de uma família composta por 5 filhos, um pai que desde o início do ano permanece desempregado, e uma mãe que trabalha como diarista em casa de família, permanecendo durante todo o dia, ausente do contato com os filhos.
A criança permanece durante o período da manhã sob os cuidados no núcleo assistencial e, somente após o almoço, é encaminhada a escola, sendo que, no período em que localiza-se abrigada pelos muros da instituição, demonstra boa capacidade de socialização com as crianças e com os adultos que ali tem contato direto, porém exterioriza um olhar e um semblante denunciadores de um viver sofrido e angustiante.
Maria não encarna o estereótipo de criança “problema” tão depreciado pela instituição e/ou pelas instituições educacionais de um modo geral. Não apresenta nenhum complicador no que tange as queixas constantes das instituições aos comportamentos manifestos, ditos inadequados, vivenciados no período infantil. Não é uma criança agressiva, não hostiliza os colegas, não questiona nem tão pouco transgride os mandatos institucionais, mostrando-se, aparentemente, plenamente adequada e adaptada à realidade institucional na qual está inserida. Aparentemente, pois é exatamente esta “aceitação” exacerbada ao que lhe é oferecido, que entendo como sendo um ponto merecedor de atenção e escuta. Que situações da vida íntima e familiar dessa criança a levaram a se posicionar tão passivamente frente à realidade? Que conflitos internos estão subjacentes a esta pretensa adequação e subordinação de seus desejos em prol da convivência social pacífica nos grupos dos quais faz parte?
No intuito em esboçar caminhos que pudessem me aproximar e ainda, me permitir uma maior compreensão da realidade experenciada por Maria, utilizo como fio condutor em todo o processo psicoterápico (que se fez nos parâmetros da terapia breve de orientação psicanalítica, em congruência com o aporte teórico oferecido pela psicologia social), um investimento em instrumentais lúdicos, em especial a análise de desenho infantil e a vivência corporal por meio de jogos, brincadeiras e dramatizações, recursos essencialmente ludoterápicos.
No decorrer dos atendimentos, minhas iniciativas incidiam na tentativa de se transcender o espaço destinado ao guardar – pois o setting terapêutico se fazia no almoxarifado – a um lugar por excelência do revelar, onde a criança poderia dar voz a toda uma gama de sensações, sentimentos, culpas, ideais, repressões e angústias, que por infindáveis e imemoráveis anos manteve guardadas para si. Enfim, poderia dizer de si mesma e através deste dito, encontrar estratégias que a permitissem melhor lidar com suas dificuldades.
No início de nossos trabalhos, Maria apresenta grande dificuldade em verbalizar. Prioriza a expressão fácil e corporal, e vez por outra, se permitia me olhar nos olhos, iniciando uma brincadeira silenciosa de imitação de gestos, que culminava sempre com “risinhos” tendenciosos. Quando se volta para os materiais que disponibilizo para uso na sessão (lápis de cor, giz de cera, cola, fita crepe, tesoura, papel, jornal, tinta guaxe, tangran, fantasias entre outros), sua atuação se dá quase sempre, da mesma forma: inicia um processo de ordenamento dos materiais, separando-os, discriminando-os e classificando-os numa lógica própria (ora por tonalidades de cores, ora por tamanhos em ordem crescente ou decrescente...), para só depois, partir para o processo de criação propriamente dito.
Detectada a dificuldade de expressão verbal, procuro induzir a possibilidade da fala nas pequenas brechas que ocorrem quando Maria realiza sua produção, ou seja, no momento em que a criança se põe a utilizar o recurso lúdico como modo metafórico de dizer daquilo que a incomoda, eu adentro a fantasia da criança, brinco e viajo imaginativamente com ela, procurando lhe oferecer ferramentas que, no exercício da fala acerca do que, como e para que se criou, permita o estabelecimento de conexões e relações com os mais diversos campos de inserção social da criança.
Nesse sentido, recursos como a interpretação, a pontuação de frases e a marcação de determinados pontos do discurso trazido, foram facilitadores do processo que, tem por finalidade, fazer emergir à consciência da criança, a posição subjetiva que ela ocupa em relação aos outros, em especial à sua família e ao núcleo assistencial no qual está inserida.
Sabe-se que a família é o primeiro grande grupo no qual somos introduzidos, e é ela a responsável por o que se convencionou nomear socialização primária, ou seja, é no seio familiar que são internalizados os primeiros valores, normas, convenções, papéis e representações, que nos permitem perceber o mundo e a nos situarmos nele. Em nossa sociedade eminentemente capitalista, o que vigora é o modelo de família nuclear burguesa, onde pai, mãe e filhos vivem miraculosamente sem conflitos, numa expressão contínua de amor eterno e “desinteressado”. Contudo, este modelo idealizado permanece ausente da real situação vivida por milhares, e ouso afirmar de todos os lares, em especial a grande maioria dos lares brasileiros, que não conhecem outra, senão a realidade da miséria econômica e afetiva, do desemprego e da marginalização. A família de Maria compactua desta realidade de ausências, o que esclarece e torna compreensível a recusa inicial da criança em verbalizar qualquer fato que faça menção a sua vida familiar.
Sendo questionada acerca de situações corriqueiras do cotidiano familiar, a criança responde com extrema evasão, acentuada resistência egóica, acrescida de certo teor de indiferença para aqueles que também o foram e são indiferentes para com ela. Questionada, Maria não consegue se recordar de nenhuma situação, de nenhum momento em que estavam juntos todos os membros de sua família, e quando indagada e provocada a verbalizar alguma característica sobre os pais, responde com parâmetros de ordem física e objetiva, inexistentes de impregnação afetiva:
Pai = alto
Mãe = usa óculos
A impressão que me fica é a de uma família extremamente fragmentada, onde os papéis não são suficientemente desempenhados, nem tão pouco os cuidados são exercidos da forma na qual as crianças necessitam, e a cada um, é entregue a responsabilidade de aprender por si só, a sobreviver no mundo. Em relatos posteriores, após ter-se estabelecido amplamente o vínculo transferencial, Maria me confirma esta hipótese, denunciando a forma na qual a família se gerencia. A mãe é caracterizada pela criança como “muito nervosa” (sic), “sempre briga com meu pai quando ele chega mais tarde e xinga muito” (sic), assumindo uma posição repressora e autoritária. Já no que tange ao pai, a criança o revela enquanto fraco, alguém que precisa ser socorrido, que precisa de ajuda para exercer sua função e é exatamente neste buraco que a criança se localiza: “é ruim eles brigarem na frente da gente. Teve um dia que minha mãe mandou meu pai embora e aí eu comecei a chorar e a pedir pro meu pai não ir embora e a minha mãe deixou ele ficar”. (sic)
De acordo com Frida Atiè (1999), a questão do lugar dos pais sempre esteve presente nos tratamentos psicanalíticos de crianças, em sua prática, afirma que o analista infantil necessariamente tem que lidar com os pais, já que a criança é totalmente dependente deles, tanto no aspecto objetivo quanto no subjetivo. Assim, a forma como os pais se posicionam, é determinante no processo terapêutico do paciente infantil, pois entende-se como o lugar dos pais não apenas o seu papel ou sua importância no tratamento, mas a forma com que se posicionam, interferindo nas configurações que assume a prática clínica e modificando-a.
O que subtraio da conduta de Maria é exatamente uma tentativa de salvaguardar sua família do desenlace total, para tanto, a criança não mede esforços e se coloca enquanto fiadora, avalista deste pai que se apresenta insuficiente enquanto tal, no entanto, este investimento retorna em conseqüências perigosas e danosas à saúde psíquica da criança, que acaba por chamar para si, a responsabilidade do fracasso conjugal de seus pais, vivenciando fortes e avassaladores sentimentos de culpa.
Várias são as sessões onde o tema “brigas” se faz presente de forma velada e camuflada, onde a criança munida do recurso lúdico me convida a travar com ela uma “batalha naval”, e demonstra extrema satisfação quando executa, na completa extensão da palavra, as figuras parentais, ali representadas pelos navios maiores. O pedido pelas brincadeiras, em especial os jogos de competição, aonde um, inevitavelmente, irá se sobrepor a um outro, se tornam constantes na medida em que interpelo a criança no sentido de que fale sobre sua família. Como Maria referenda sua fala a partir do querer (querer jogar comigo), eu transporto e abro seu discurso para a dimensão das coisas que ela quer em cada situação de sua vida, e ressalto essencialmente, o núcleo familiar. A resposta da criança vem sem demora afirmando não querer nada na e/ou, com a família. Nesse momento interpreto à criança que diante do que ela tem vivido, acabou desenvolvendo um mecanismo de defesa, onde entendeu-se por bem que a estratégia mais eficaz, se dá a partir da afirmação: não querer nada com a sua família, é a oposição a “essa não é a família que quero”, ou ainda, “essa família nada quer comigo”, numa tentativa em afastar aquilo que lhe causa tamanho sofrimento.
No instante em que Maria consegue verbalizar sua fantasia de morte aos pais (externaliza oralmente a destruição dos navios de grande porte, ou desenha figuras humanas e sequencialmente as apaga), imediatamente é tomada por um avassalador sentimento de culpabilização: “Eu fiz errado” (sic), afirma acerca de sua produção pictórica. Minha proposição incide justamente em elucidar para a criança que seus sentimentos são legítimos e pontuo acerca do desenho: “Errado não, diferente sim. Você fez diferente”.
De acordo com Melanie Klein, a vivência deste processo de culpabilização, representa um avanço, pois essa capacidade referenda a chegada da criança à posição depressiva, que implica num grau de integração pessoal, assim com a aceitação da responsabilidade por toda a destrutividade que está ligada ao viver. Segundo a autora, a posição depressiva está diretamente ligada a mudanças fundamentais na organização libidinal infantil.
A partir desta colocação, a criança passa a trabalhar como tema central nos atendimentos, a questão dos diferentes, isto é, dos opostos, que vem validar a própria relação conjugal de seus pais e também a aceitação de que o plano destinado à realidade é, terminantemente, diferente do plano ideal. Maria então passa a utilizar o “tangran” (quebra cabeça de origem chinesa praticado há muitos séculos em todo o Oriente cujo nome significa “tábua de sete sabedorias”), separando e posteriormente reagrupando as figuras, tendo como recurso discriminativo cores e formas. A interpretação vai de encontro às tentativas da criança em ajuntar os opostos – pai e mãe – e edificar a seu modo, sua casa, isto é, manter de pé, salvaguardar sua família. Porém, para arcar com este lugar, a criança acabava sofrendo duras conseqüências, inclusive o sentimento de solidão, exteriorizado nos vários desenhos de árvores isoladas e abandonadas no branco da folha de papel, bem como uma forte sensação de fracasso, por identificar-se com o lugar não exercido pela figura paterna.
É interessante notar que, a criança não só diz de si ao utilizar recursos lúdicos, como também responde, por via da brincadeira, à interpretação. Na sessão seguinte, Maria é tomada por um movimento diferente, e se apropria novamente do tangran, porém valorizando o ajuntamento de pares diferentes. Desta brincadeira, faz-se a evolução para um jogo mais elaborado e requisita minha presença para “auxiliá-la” a formar uma “partida de futebol”, onde todas as peças se misturam, se chocam e se fundem, se esbarram e caem no chão, isto é, interagem verdadeiramente. É somente quando a criança se permite acolher, aceitar e aprender a lidar com as diferenças que circundam sua vida, que lhe é possível de fato exercer uma interação com as demais pessoas.
No que concerne ao papel da brincadeira na análise infantil, Melanie Klein afirma que todo ato de brincar da criança poderia ser visto como uma projeção de sua realidade psíquica. Portanto se olharmos uma criança brincando, seremos capazes de visualizar seu mundo interior.
Por fim, é importante levar em conta a todo o momento o contexto pessoal e a realidade externa que circunda a criança. Com uma subjetividade ainda em formação, dependente tanto psíquica como concretamente dos pais e das instituições nas quais está inserida, a criança mais do que o adulto estabelece vínculos móveis e dinâmicos, não apenas com a sua família, mas com as demais figuras que podem representá-la, entre elas, destacando-se a figura do analista. Cabe a ele trabalhar esses vínculos, com os pais, com a instituição e com a própria criança.
Não espero, é verdade, que Maria, assim como a personagem da estória infantil, após o regresso de suas aventuras a casa, se depare com um lar harmonioso, feliz, liberto de toda espécie de conflito. Este final, talvez não possa ser escrito, nem por ela, nem tão pouco por mim. Mas acredito que verdadeiramente, é possível à Maria transformar seu pequeno mundo interno num lugar de maior leveza para que, ao olhar-se no espelho, se descubra enquanto força crescente de vida, que é capaz de lutar, capaz de perseguir seus sonhos, capaz de se tornar sujeito de sua própria história, enfim que é capaz de ser...
Ser menina...
Ser Maria...
“ Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
é a dose mais forte e lenta
de uma gente que ri quando deve chorar
e não vive, apenas agüenta
Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria, mistura a dor e a alegria”
Milton Nascimento

Referências Bibliográficas


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KLEIN, M. (1932) Psicanálise da criança. 2ªed., São Paulo: Mestre Jou, 1975.
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