Constituição do Sujeito e Desenvolvimento Psicomotor.
Autora: Erica Gomes Pontes (*)
“O homem nunca perde o desejo de brincar e
sua manifestação o acompanha em toda sua vida.”
(LORDA, 1998, p. 34)
O sonho, ao longo da trajetória da humanidade, tem se constituído enquanto fundamento e gênese primeira de toda e qualquer ação humana no mundo. Toda realização, da mais simples a mais elaborada, existiu em um primeiro momento enquanto sonho, enquanto possibilidade, recriando-se num processo dinâmico e constante de eterno vir-a-ser.
Sonhar é permitir-se dar novos contornos e nuances a realidade experenciada. É reinventar vontades, é refazer planos, é mergulhar no oceano indecifrável onde moram submersos nossos pensamentos lhes oferecendo novas vazantes e destinos.
Sonhar é descortinar possibilidades.
“Sonhar é uma forma que temos de preservar a vida, de prolongar a existência. Sonhar é nos fazer carinho, é adoçar o cotidiano enquanto esperamos(...)”
(Bartolomeu Campos)
Contudo, parece residir nos sonhos, algo de uma incompletude inominável, como um vazio, indecifrável e ao mesmo tempo inalcançável.
Como tornar real o que por definição inexiste? Como dar vida e sentido ao que não consigo traduzir em formas e gestos culturalmente compartilhados?
O sonho, característica intrinsecamente humana, assim se constitui por carregar inscrito em sua linguagem um hiato operante, uma falta concisa e repetida próprias deste ser que se intitula humano.
Ao homem falta-lhe tudo e o nada. E o sonho? O sonho é um enigma oculto. Um texto em rubrica no aguardo paciente por sua tradução. Sonhar é pedir, e só pede quem deseja.
Nosso corpo é atravessado e marcado pelos mais íntimos e sigilosos desejos. Terreno fecundo, de onde vazam conteúdos subjetivos inscritos, lidos e interpretados a partir do olhar do Outro. Olhar que outorga-lhe sentido, compreende e interpreta-o como gesto portador de um dizer. Olhar que instaura um verdadeiro ato, que edifica uma cena, que alcança e toca o sujeito no intocável de seus sentidos:
“Somente alcançará sua humanidade aquele que se permitir viver seu corpo, em seus desejos e suas limitações, pois o homem é seu corpo...”
Le Boulch (1990) explica que a imagem corporal não é pré-formada, ela estrutura-se nas relações vividas pelo sujeito e o ambiente que o cerca, organizando-se como núcleo central de sua personalidade. As atividades motoras de exploração e experimentação são essenciais no processo e em sua evolução. A estruturação do esquema corporal, no qual se insere a imagem corporal, dá-se por uma estreita ligação entre as duas imagens corporais: o “corpo vivido” – imagem do corpo identificado como seu próprio EU; e “corpo representado” – é a própria organização do esquema corporal.
Nesse sentido, o corpo é letra e, portanto, lido pelo outro por se revelar enquanto expressão de desejos e pulsões. Não se trata apenas de um corpo orgânico de funções vitais, mas sim de um corpo fantasmático, um corpo investido pelo desejo do Outro, e desta forma um corpo simbólico.
O corpo é quem mediatiza as relações, quem permite ao ser falante, escapar da divisão brutal da linguagem que obriga o sujeito a só falar na posição em que o Outro lhe endereça a palavra. Aqui há um equivoco quando se trata do corpo, pois este, antes da linguagem e ao lado desta, apresenta expressões mais primária, mais pura que a corporal. E como afirma Jean Bergès:
“É na expressão corporal que se encontra assujeitada ao outro, a quem o gesto é dado a ver, assujeitado a seu olhar, como palavra ao ouvido do auditor, e engajado no mesmo semblante e na mesma busca de ser compreendido, notado, amado no órgão da gestualiadade, e não no da voz, senão que o corpo é antes de qualquer coisa, um receptáculo, um lugar de inscrição do outro”. (Escritos da Criança 2 p.51.)
E é exatamente neste espaço simbólico, espaço destinado ao brincar na mais profunda de suas interpretações, que o sujeito se constituirá, desconstruindo estigmas e conceitos estereotipados, se permitindo ver a si mesmo e porque não afirmar, decodificando seus sintomas.
O ideário edificado pela Psicomotricidade vai de encontro ao resgate deste sujeito, busca a partir da vivência do corpo enquanto receptáculo de afetos, gerar um espaço lúdico e por excelência, permeado pelos mais profundos sentidos, onde possa emergir um sujeito completo. Tudo se exprime através do corpo, nesse sentido, o grande feito é se tornar parceiro do outro, auxiliando-o a exprimir, a conhecer o que se passa no universo dos afetos.
Contudo, é preciso aceitar que para além de todo e qualquer conhecimento que adquira sobre si mesmo, sobre a fonte de minhas angústias ou sobre o motivo que norteia minhas escolhas, sempre haverá algo da ordem do inalcançável, do ilegível, do não-dito, do não-saber sobre mim. Para construir um saber é preciso aceitar o próprio não-saber. Somente não sabendo, pode-se representar; é exatamente por isso, que a criança investe toda a sua energia na ação do BRINCAR, pois o brincar, enquanto expressão máxima do potencial representativo, constitui a criança.
A criança se movimenta em função de uma história própria; o brincar permite adentrar esse mundo particular de sentidos e resgatar o infantil perdido na criança. É, portanto, o brincar que constitui a criança.
Brincar é pensar, é representar, é transformar, é possibilidade de construir o pensamento, pois ao antecipar os caminhos por onde será fundamentada a subjetividade, antecipa-se à construção da função simbólica, permitindo um constante desdobrar de sentidos. Ao brincar, inaugura-se um espaço onde é permitido realizar um laço, um vínculo com o outro. Quando brinca, a criança se recria num processo contínuo, pois o corpo é um significante que está incluído na cadeia do simbólico. E através dos cortes, das marcas, das inscrições do outro, que o corpo subjetivado será constituído.
.
“O corpo e tudo o que está em contato com ele é o lugar da proveniência: no corpo está o estigma dos acontecimentos passados; dele provêm também os desejos, as impotências e os erros (...). o corpo é uma massa que se desfaz sem cessar. Portanto, a genealogia está, como análise da proveniência, onde o corpo se entrelaça com a história. “ (Michel Foucault)
Ainda, podemos constatar que a imagem corporal do sujeito é determinada pelo jogo na relação como outro. Ao situar-se frente a si mesmo de acordo com o lugar que ocupa ao ser olhado, tocado, desejado pelo outro, o sujeito constitui, assim, sua imagem.
“O lugar do outro não deve ser buscado em outra parte, mas no corpo, não é intersubjetividade, mas cicatrizes sobre o corpo tegumentar, pedúnculos a conectar em seus orifícios para que façam neles vezes de maçanetas, artífices e técnicos que o carcomem. “
(Jaques Lacan)
Assim, investido pelo olhar do Outro, o corpo se consolida e se fundamenta enquanto possibilidade e realização. Já não é mais apenas sonho, se constrói e se recria enquanto fecunda realidade, criando asas, se libertando de antigas e opressoras amarras, parte em busca de céus infinitos. Foi preciso trilhar longos caminhos, deparar-se com sinuosos labirintos, perder-se e encontrar-se novamente. Encontrar-se. Descobrir-se como autor de seu próprio mito particular. Permitir-se ser. Ser além de tudo e ser acima de tudo feliz...
Referências Bibliográficas
BERGÈS, Escritos da Criança, O Corpo e Olhar do Outro, Trad. Reis, Carlos Eduardo. Porto Alegre, Nº 2 - 1988.
LE BOULCH, Jean “Desenvolvimento Psicomotor dos 0 aos 6 Anos” trad. Jeni Wolff. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
___________ Educação Psicomotora – A Psicocinética na idade escolar. Porto Alegre – Arte Médicas – 2ª ed, 1988.
LE CAMUS, Jean. O corpo em discussão: da reeducação psicomotora às terapias de mediação corporal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. 164 p.
LEVIN, Esteban. A clínica psicomotora: o corpo na linguagem. Petrópolis: Vozes, 1995. 341 p.
_______A função do Filho: espelho e labirintos da infância; tradução de Ricardo Rosencusch - Petrópolis RJ, Ed Vozes, 2001.
_______A Infância em Cena: constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor; tradução de Lúcia Endlich Orth e Epraim Ferreira Alves - Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 1997.
LACAN J., Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (texto estabelecido por J.-A. Miller), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
LORDA, Raul C. Recreação na terceira idade. 2 ed. SP: Sprint, 1998. 130 p.
WINNICOTT , D.W, O brincar e a realidade, tradução de José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Copacabana, RJ, Ed. Imago, 1975.
ericapontes@gmail.com
Autora: Erica Gomes Pontes (*)
“O homem nunca perde o desejo de brincar e
sua manifestação o acompanha em toda sua vida.”
(LORDA, 1998, p. 34)
O sonho, ao longo da trajetória da humanidade, tem se constituído enquanto fundamento e gênese primeira de toda e qualquer ação humana no mundo. Toda realização, da mais simples a mais elaborada, existiu em um primeiro momento enquanto sonho, enquanto possibilidade, recriando-se num processo dinâmico e constante de eterno vir-a-ser.
Sonhar é permitir-se dar novos contornos e nuances a realidade experenciada. É reinventar vontades, é refazer planos, é mergulhar no oceano indecifrável onde moram submersos nossos pensamentos lhes oferecendo novas vazantes e destinos.
Sonhar é descortinar possibilidades.
“Sonhar é uma forma que temos de preservar a vida, de prolongar a existência. Sonhar é nos fazer carinho, é adoçar o cotidiano enquanto esperamos(...)”
(Bartolomeu Campos)
Contudo, parece residir nos sonhos, algo de uma incompletude inominável, como um vazio, indecifrável e ao mesmo tempo inalcançável.
Como tornar real o que por definição inexiste? Como dar vida e sentido ao que não consigo traduzir em formas e gestos culturalmente compartilhados?
O sonho, característica intrinsecamente humana, assim se constitui por carregar inscrito em sua linguagem um hiato operante, uma falta concisa e repetida próprias deste ser que se intitula humano.
Ao homem falta-lhe tudo e o nada. E o sonho? O sonho é um enigma oculto. Um texto em rubrica no aguardo paciente por sua tradução. Sonhar é pedir, e só pede quem deseja.
Nosso corpo é atravessado e marcado pelos mais íntimos e sigilosos desejos. Terreno fecundo, de onde vazam conteúdos subjetivos inscritos, lidos e interpretados a partir do olhar do Outro. Olhar que outorga-lhe sentido, compreende e interpreta-o como gesto portador de um dizer. Olhar que instaura um verdadeiro ato, que edifica uma cena, que alcança e toca o sujeito no intocável de seus sentidos:
“Somente alcançará sua humanidade aquele que se permitir viver seu corpo, em seus desejos e suas limitações, pois o homem é seu corpo...”
Le Boulch (1990) explica que a imagem corporal não é pré-formada, ela estrutura-se nas relações vividas pelo sujeito e o ambiente que o cerca, organizando-se como núcleo central de sua personalidade. As atividades motoras de exploração e experimentação são essenciais no processo e em sua evolução. A estruturação do esquema corporal, no qual se insere a imagem corporal, dá-se por uma estreita ligação entre as duas imagens corporais: o “corpo vivido” – imagem do corpo identificado como seu próprio EU; e “corpo representado” – é a própria organização do esquema corporal.
Nesse sentido, o corpo é letra e, portanto, lido pelo outro por se revelar enquanto expressão de desejos e pulsões. Não se trata apenas de um corpo orgânico de funções vitais, mas sim de um corpo fantasmático, um corpo investido pelo desejo do Outro, e desta forma um corpo simbólico.
O corpo é quem mediatiza as relações, quem permite ao ser falante, escapar da divisão brutal da linguagem que obriga o sujeito a só falar na posição em que o Outro lhe endereça a palavra. Aqui há um equivoco quando se trata do corpo, pois este, antes da linguagem e ao lado desta, apresenta expressões mais primária, mais pura que a corporal. E como afirma Jean Bergès:
“É na expressão corporal que se encontra assujeitada ao outro, a quem o gesto é dado a ver, assujeitado a seu olhar, como palavra ao ouvido do auditor, e engajado no mesmo semblante e na mesma busca de ser compreendido, notado, amado no órgão da gestualiadade, e não no da voz, senão que o corpo é antes de qualquer coisa, um receptáculo, um lugar de inscrição do outro”. (Escritos da Criança 2 p.51.)
E é exatamente neste espaço simbólico, espaço destinado ao brincar na mais profunda de suas interpretações, que o sujeito se constituirá, desconstruindo estigmas e conceitos estereotipados, se permitindo ver a si mesmo e porque não afirmar, decodificando seus sintomas.
O ideário edificado pela Psicomotricidade vai de encontro ao resgate deste sujeito, busca a partir da vivência do corpo enquanto receptáculo de afetos, gerar um espaço lúdico e por excelência, permeado pelos mais profundos sentidos, onde possa emergir um sujeito completo. Tudo se exprime através do corpo, nesse sentido, o grande feito é se tornar parceiro do outro, auxiliando-o a exprimir, a conhecer o que se passa no universo dos afetos.
Contudo, é preciso aceitar que para além de todo e qualquer conhecimento que adquira sobre si mesmo, sobre a fonte de minhas angústias ou sobre o motivo que norteia minhas escolhas, sempre haverá algo da ordem do inalcançável, do ilegível, do não-dito, do não-saber sobre mim. Para construir um saber é preciso aceitar o próprio não-saber. Somente não sabendo, pode-se representar; é exatamente por isso, que a criança investe toda a sua energia na ação do BRINCAR, pois o brincar, enquanto expressão máxima do potencial representativo, constitui a criança.
A criança se movimenta em função de uma história própria; o brincar permite adentrar esse mundo particular de sentidos e resgatar o infantil perdido na criança. É, portanto, o brincar que constitui a criança.
Brincar é pensar, é representar, é transformar, é possibilidade de construir o pensamento, pois ao antecipar os caminhos por onde será fundamentada a subjetividade, antecipa-se à construção da função simbólica, permitindo um constante desdobrar de sentidos. Ao brincar, inaugura-se um espaço onde é permitido realizar um laço, um vínculo com o outro. Quando brinca, a criança se recria num processo contínuo, pois o corpo é um significante que está incluído na cadeia do simbólico. E através dos cortes, das marcas, das inscrições do outro, que o corpo subjetivado será constituído.
.
“O corpo e tudo o que está em contato com ele é o lugar da proveniência: no corpo está o estigma dos acontecimentos passados; dele provêm também os desejos, as impotências e os erros (...). o corpo é uma massa que se desfaz sem cessar. Portanto, a genealogia está, como análise da proveniência, onde o corpo se entrelaça com a história. “ (Michel Foucault)
Ainda, podemos constatar que a imagem corporal do sujeito é determinada pelo jogo na relação como outro. Ao situar-se frente a si mesmo de acordo com o lugar que ocupa ao ser olhado, tocado, desejado pelo outro, o sujeito constitui, assim, sua imagem.
“O lugar do outro não deve ser buscado em outra parte, mas no corpo, não é intersubjetividade, mas cicatrizes sobre o corpo tegumentar, pedúnculos a conectar em seus orifícios para que façam neles vezes de maçanetas, artífices e técnicos que o carcomem. “
(Jaques Lacan)
Assim, investido pelo olhar do Outro, o corpo se consolida e se fundamenta enquanto possibilidade e realização. Já não é mais apenas sonho, se constrói e se recria enquanto fecunda realidade, criando asas, se libertando de antigas e opressoras amarras, parte em busca de céus infinitos. Foi preciso trilhar longos caminhos, deparar-se com sinuosos labirintos, perder-se e encontrar-se novamente. Encontrar-se. Descobrir-se como autor de seu próprio mito particular. Permitir-se ser. Ser além de tudo e ser acima de tudo feliz...
Referências Bibliográficas
BERGÈS, Escritos da Criança, O Corpo e Olhar do Outro, Trad. Reis, Carlos Eduardo. Porto Alegre, Nº 2 - 1988.
LE BOULCH, Jean “Desenvolvimento Psicomotor dos 0 aos 6 Anos” trad. Jeni Wolff. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
___________ Educação Psicomotora – A Psicocinética na idade escolar. Porto Alegre – Arte Médicas – 2ª ed, 1988.
LE CAMUS, Jean. O corpo em discussão: da reeducação psicomotora às terapias de mediação corporal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. 164 p.
LEVIN, Esteban. A clínica psicomotora: o corpo na linguagem. Petrópolis: Vozes, 1995. 341 p.
_______A função do Filho: espelho e labirintos da infância; tradução de Ricardo Rosencusch - Petrópolis RJ, Ed Vozes, 2001.
_______A Infância em Cena: constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor; tradução de Lúcia Endlich Orth e Epraim Ferreira Alves - Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 1997.
LACAN J., Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (texto estabelecido por J.-A. Miller), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
LORDA, Raul C. Recreação na terceira idade. 2 ed. SP: Sprint, 1998. 130 p.
WINNICOTT , D.W, O brincar e a realidade, tradução de José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Copacabana, RJ, Ed. Imago, 1975.
ericapontes@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário