Reflexões sobre a prática analítica no âmbito
da infância em instituições educacionais
Autora: Erica Gomes Pontes, 2006.
Como se constitui e se configura um sintoma? Que mensagem oculta busca revelar em suas mais diversificadas manifestações? Como compreender a linguagem metaforizada expressa nas vivências sintomáticas cada vez mais acentuadas em crianças?
O cenário contemporâneo social tem nos revelado de modo cada vez mais freqüente, em especial no campo educacional, o surgimento de sintomas infantis, nomeados usualmente como dificuldades de aprendizagem e/ou dificuldades ou inabilidades de interação e relacionamento interpessoal, manifestos estritamente sobre os rótulos de agressividade, inadaptação, intolerância a frustrações e imaturidade emocional.
Na busca em lançar luz a esses infindáveis questionamentos e, na tentativa primeira em disponibilizar à maior gama possível de infantes inseridos nas instituições educacionais, a vivência plena de seus potenciais de aprendizagem, a partir da minimização de sintomas, idealiza-se a presente reflexão, originada a partir da prática analítica vivida em uma instituição privada de educação infantil do Município de Divinópolis/MG, em 2004.
da infância em instituições educacionais
Autora: Erica Gomes Pontes, 2006.
Como se constitui e se configura um sintoma? Que mensagem oculta busca revelar em suas mais diversificadas manifestações? Como compreender a linguagem metaforizada expressa nas vivências sintomáticas cada vez mais acentuadas em crianças?
O cenário contemporâneo social tem nos revelado de modo cada vez mais freqüente, em especial no campo educacional, o surgimento de sintomas infantis, nomeados usualmente como dificuldades de aprendizagem e/ou dificuldades ou inabilidades de interação e relacionamento interpessoal, manifestos estritamente sobre os rótulos de agressividade, inadaptação, intolerância a frustrações e imaturidade emocional.
Na busca em lançar luz a esses infindáveis questionamentos e, na tentativa primeira em disponibilizar à maior gama possível de infantes inseridos nas instituições educacionais, a vivência plena de seus potenciais de aprendizagem, a partir da minimização de sintomas, idealiza-se a presente reflexão, originada a partir da prática analítica vivida em uma instituição privada de educação infantil do Município de Divinópolis/MG, em 2004.
Ana é uma criança de cinco anos de idade iniciando sua vida escolar. Portadora de um sorriso cativante apresenta-se como uma criança alegre, com boa capacidade de expressão verbal e lingüística. Circula com grande facilidade por todos os espaços institucionais, não apresentando nenhum comprometimento de caráter motor, nem tão pouco cognitivo, incidindo sobre as figuras adultas, suas observações e curiosidades constantes de modo claro, coeso e sistemático. Evidencia grande potencial relacional/afetivo, requisitando freqüentemente a presença e o corpo adulto, como aportes a suas investidas libidinais, demarcadas essencialmente, por fortes e calorosos abraços e beijos carinhosos.
Contudo, ao final da primeira semana de inserção na escola, denominada por período de adaptação, a criança dá início a uma série de comportamentos desviantes, tendo como foco principal à execução de mordidas, direcionadas estritamente às crianças entre um e dois anos de idade. É interessante relatar o contexto no qual se evidenciavam as mordidas, pois estes não se configuravam em nenhuma situação de conflito, disputa ou repressão que justificassem o investimento ou apelo agressivo. Em momentos e atividades de rotina do quadro institucional, “aparentemente” sem motivo declarado, a criança tomada por um movimento de vazão, efetuava as mordidas, mostrando-se seqüencialmente, marcada por fortes sentimentos de ansiedade, inquietude e culpabilização.
As cenas, antes extraordinárias, começam a se inscrever com uma periodicidade diária, o que gerou extremo mal estar entre a equipe pedagógica, pois na ausência de compreensão do comportamento apresentado, não conseguia postular estratégias de ação que dessem conta, em primeiro plano, de acolher a criança, (visivelmente marcada por sentimentos de angústia ao ser gradativamente isolada do convívio social do grupo que, se resguardava de mais uma investida violenta), nem tão pouco em um segundo momento, de compreender e extirpar o sintoma.
O fator de principal motivação da equipe pedagógica centrava-se na extinção do sintoma e é a partir desta demanda, que a criança é encaminhada para o serviço de psicologia.
Após o encaminhamento institucional, convido os pais para uma entrevista clínica na qual sua filha não esteja presente, mas seja informada do procedimento. Embora o convite se estenda ao par, é freqüente o comparecimento apenas da mãe, raramente o pai e excepcionalmente os dois; de modo que qualquer uma dessas configurações é, em si mesma reveladora da dinâmica familiar.
Somente a mãe comparece a entrevista e no decorrer do relato que circunda entre o motivo da consulta, a história da criança e a vivência das relações familiares, deixa transparecer certo desconforto no que concerne a rememoração do período de desmame da criança.
A afirmativa materna incide sobre uma certeza, que não consegue explicitar clara e concisamente, do momento adequado a desmamar a criança, fato ocorrido assim que Ana completou um ano de idade. Questiono e investigo as possíveis causas geradoras desta certeza, sem, no entanto, conseguir uma explicação pautável, pois de acordo com os relatos da mãe, ainda era intensa sua produção de leite e a criança manifestava normalmente seu desejo pelo aleitamento. O que não se inscrevia mais era o desejo desta mãe em amamentar sua filha.
Munida desta certeza, a mãe inicia uma série complexa de rituais no intuito de efetivar o desmame. Relata-me, com extrema tranqüilidade e ausência de qualquer sentimento de constrangimento, culpabilização ou remorso, que a princípio, espalhou sobre os seios tinta guaxe azul na expectativa de que ao visualizá-los, a criança os rejeitasse por não identificá-los como sadios e/ou normais, o que obviamente não ocorreu. Em uma segunda tentativa, a mãe banha os seios com mercúrio cromo para que a criança “pense” que os mesmos estão machucados e os refute, ação que também fracassa. Como terceira e última tentativa, a mãe espalha sobre os seios babosa, uma planta e o oferece a criança que, sentindo o paladar regurgita, vomitando sobre a mãe que também acaba por vomitar na criança.
A ultima tentativa relatada é repetida por diversas vezes, segundo a informante, até que a criança termina por refutar o seio materno, mesmo estando com fome.
Insisto na continuidade do processo investigativo, questionando a mãe acerca do comportamento da criança a partir desta inferência (desmame), em situações específicas do cotidiano infantil, como manutenção do sono e alternativas a alimentação, por exemplo, abstendo-me neste momento, de referendar qualquer intervenção clínica afim de não interromper e/ou gerar qualquer resistência inconsciente que pudesse dificultar o relato.
A mãe afirma ter vivenciado extremas dificuldades para fazer com que a criança adormecesse. Sendo subjugada pelo cansaço e pela ausência de possibilidades outras, já fortemente incomodada pelo choro da criança que não conseguia dormir, a informante afirma ter colocado na boca da menina uma goma de mascar (chiclete), já mastigado e, portanto amolecido, para que mordendo, a criança dormisse. O fator principal que permitirá à criança a construção de uma imagem de si mesmo e do mundo procede das relações que se estabelecem entre mãe e filho. Esta relação privilegiada é chamada por Spitz de diálogo. Diz Spitz: “O diálogo é uma forma muito especial de interação que permite ao bebe transformar pouco a pouco, os estímulos sem significado em sinais significativos. Dialogar é estabelecer uma relação mútua e recíproca na qual mãe e filho são agentes ativos, que provocam com seus gestos a resposta do outro”.
Qual mensagem codificada é transmitida nesse diálogo silencioso de gestos entre mãe e filha? Que dizer é ofertado, que linguagem se inscreve nesta cena desvestida de palavras, mas repleta de significado? Para Fromm, a esfera mais importante do dar não se encontra nas coisas materiais, mas no domínio do especificamente humano. O que uma pessoa dá a outra? Dá a si mesma, o que não significa, necessariamente, dar a sua vida pelo outro, mas sim permitir que se estabeleça um laço afetivo, um vínculo onde possam ser compartilhadas todas as manifestações de vida que lhe são inerentes. O que esta mãe dá a sua filha? Ora, parece-nos plausível afirmar que na cena relatada se evidencia uma verdadeira troca, onde um mecanismo de satisfação dá lugar a outro, isto é, o sugar é substituído pelo mastigar/morder. Sabe-se que um sintoma, por mais estranhamente que se configure, reside sob uma história lógica, um traço eminentemente particular que o sujeito apreende, retira de um Outro e toma como seu a fim de auxiliá-lo a lidar com a frustração, ou seja, com a real, porém avassaladora insatisfação de seu desejo.
Os diversos acontecimentos que vivenciamos no decorrer de nossa vida determinam nossa percepção dos objetos, pois a estes, sempre está associado um afeto correspondente. Na constituição do sintoma, a representação penosa impossível de ser elaborada no momento é recalcada para o ICS e seu afeto é deslocado para uma zona do corpo, geralmente implicada na cena traumática. Não é gratuito, portanto, a eleição de Ana pela zona oral, pelo morder. Na eminência da dificuldade em verbalizar, externalizar os sentimentos e as emoções que a circundam, a criança lança mão da única possibilidade de expressão que consegue disponibilizar, isto é, diz de si através da configuração sintomática.
Por compreender a fundação do inconsciente como decorrente do campo do outro, através de seu desejo, e ao entender o sintoma na criança como uma formação metonímica dos conflitos parentais (produto de uma formação deslocada de seu inconsciente na relação com sua sexualidade reprimida), ou seja, quando, em detrimento do pulsional, o desejo do desejo do outro assume um caráter auto-traumático, pode-se compreender a lógica referendada pela criança na formação de seu sintoma, onde morder é retirar, arrancar do Outro o que lhe foi negado experenciar, uma tentativa desesperada de resgate do que se perdeu, do que não lhe foi dado.
É bem verdade que se dá aquilo que se tem, e na impossibilidade materna em se dar a sua filha, em acolhê-la em suas mais tenras demandas, instaura-se aí um sentimento de fracasso, de insuficiência, quase uma auto-marginalização que culmina na apreensão da criança deste vivido como traço identificatório, levando Ana a se posicionar e a se identificar com esse fracasso, com a impossibilidade de ser amada por não ser suficientemente boa, por não merecer, ou ainda por não possuir os atributos necessários. Se como postula Lacan, “Toda demanda é sempre uma demanda de amor”, é importante salientar, que o investimento agressivo vivido por Ana e direcionado às crianças entre 1 e 2 anos de idade inseridas na instituição educacional se dava portanto, como tentativa de resgate de um amor supostamente negado, perdido.
Ao tomar ciência desta premissa a partir da interpretação, nota-se clara mudança no âmbito das relações vivenciadas entre mãe e filha, de modo que a primeira ressignifica seu posicionamento subjetivo frente à criança, tornando-se mais solicita e mais disponível a Ana, diminuindo significativamente as investidas e falas pejorativas e culpabilizadoras.
É neste momento que se inicia efetivamente o processo analítico de Ana, que deixa emergir nas sessões que se seguem, toda uma bagagem de fantasias, significados e internalizações a respeito de sua conduta. Nas dramatizações realizadas com fantoches de personagens do universo fantástico infantil (bruxas, fadas, lobo mau, porquinhos...), é nítida sua predileção e identificação com os personagens transgressores, em especial a figura do lobo, que segundo relato da própria criança, é mau porque morde. Procura-se então, a partir do aporte oferecido pela ludoterapia de embasamento psicanalítico, mergulhar no mundo particular de Ana, viabilizando pelo intermédio do brincar, um diálogo reflexivo e prazeroso, investigativo, contudo estritamente acolhedor, no intuito de possibilitar a expressão e o entendimento dos afetos reprimidos.
Pontua-se à criança a possibilidade de existência de um lobo que não seja mau, mas que não saiba agir de outra forma e necessite de ajuda para poder criar outras estratégias de aproximação e interação. Questiona-se a aparente maldade da bruxa, que segundo a criança, é má porque não dá carinho (afirmativa direcionada a mãe), ressaltando a dualidade, a plasticidade existente nas ações humanas, atestando-se que ninguém é inteiramente bom ou mau, mas que ao ser requisitado em determinadas situações e na ausência de outras formas de atuações agimos de acordo com o que dispomos, sempre buscando junto à criança ampliar possibilidades de interpretação e ressignificação subjetiva.
Ana responde rapidamente ao tratamento analítico, tendo seu sintoma e seu sofrimento psíquico extintos em aproximadamente 6 sessões, podendo dar prosseguimento normal a sua vida escolar. Seu potencial de elaboração dos conteúdos inconscientes trabalhados mostrou-se notoriamente ágil, especialmente no que circunscreve a aceitação, isto é ao reconhecimento da castração materna (conseguir perceber que o Outro é um ser limitado, faltoso, implica em perceber e aceitar a sua própria limitação, isto é, descobrir-se enquanto ser submetido à lei) e que ser o ser da falta, é condição de existência humana e não um erro ou um fracasso. Reconhecer a castração significa situar-se em relação à própria ordem simbólica, pois ao confrontar-se com essa falta a ser, o sujeito se submete à supremacia da impotência que é a condição humana por excelência, já que do ponto de vista da psicanálise, para desejar é necessário que haja falta.
Referências Bibliográficas
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________. As psicoses: Seminário, Livro 3. 2.ed.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
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Lajonquière, L. de la (2001). A infância e a educação nos tempos sombrios do narcisismo. In Anais do Colóquio Franco-Brasileiro, Universidade de Paris XIII.
___________ (2002). Sigmund Freud, a educação e as crianças. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, 7 (12), 112-29.
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Contudo, ao final da primeira semana de inserção na escola, denominada por período de adaptação, a criança dá início a uma série de comportamentos desviantes, tendo como foco principal à execução de mordidas, direcionadas estritamente às crianças entre um e dois anos de idade. É interessante relatar o contexto no qual se evidenciavam as mordidas, pois estes não se configuravam em nenhuma situação de conflito, disputa ou repressão que justificassem o investimento ou apelo agressivo. Em momentos e atividades de rotina do quadro institucional, “aparentemente” sem motivo declarado, a criança tomada por um movimento de vazão, efetuava as mordidas, mostrando-se seqüencialmente, marcada por fortes sentimentos de ansiedade, inquietude e culpabilização.
As cenas, antes extraordinárias, começam a se inscrever com uma periodicidade diária, o que gerou extremo mal estar entre a equipe pedagógica, pois na ausência de compreensão do comportamento apresentado, não conseguia postular estratégias de ação que dessem conta, em primeiro plano, de acolher a criança, (visivelmente marcada por sentimentos de angústia ao ser gradativamente isolada do convívio social do grupo que, se resguardava de mais uma investida violenta), nem tão pouco em um segundo momento, de compreender e extirpar o sintoma.
O fator de principal motivação da equipe pedagógica centrava-se na extinção do sintoma e é a partir desta demanda, que a criança é encaminhada para o serviço de psicologia.
Após o encaminhamento institucional, convido os pais para uma entrevista clínica na qual sua filha não esteja presente, mas seja informada do procedimento. Embora o convite se estenda ao par, é freqüente o comparecimento apenas da mãe, raramente o pai e excepcionalmente os dois; de modo que qualquer uma dessas configurações é, em si mesma reveladora da dinâmica familiar.
Somente a mãe comparece a entrevista e no decorrer do relato que circunda entre o motivo da consulta, a história da criança e a vivência das relações familiares, deixa transparecer certo desconforto no que concerne a rememoração do período de desmame da criança.
A afirmativa materna incide sobre uma certeza, que não consegue explicitar clara e concisamente, do momento adequado a desmamar a criança, fato ocorrido assim que Ana completou um ano de idade. Questiono e investigo as possíveis causas geradoras desta certeza, sem, no entanto, conseguir uma explicação pautável, pois de acordo com os relatos da mãe, ainda era intensa sua produção de leite e a criança manifestava normalmente seu desejo pelo aleitamento. O que não se inscrevia mais era o desejo desta mãe em amamentar sua filha.
Munida desta certeza, a mãe inicia uma série complexa de rituais no intuito de efetivar o desmame. Relata-me, com extrema tranqüilidade e ausência de qualquer sentimento de constrangimento, culpabilização ou remorso, que a princípio, espalhou sobre os seios tinta guaxe azul na expectativa de que ao visualizá-los, a criança os rejeitasse por não identificá-los como sadios e/ou normais, o que obviamente não ocorreu. Em uma segunda tentativa, a mãe banha os seios com mercúrio cromo para que a criança “pense” que os mesmos estão machucados e os refute, ação que também fracassa. Como terceira e última tentativa, a mãe espalha sobre os seios babosa, uma planta e o oferece a criança que, sentindo o paladar regurgita, vomitando sobre a mãe que também acaba por vomitar na criança.
A ultima tentativa relatada é repetida por diversas vezes, segundo a informante, até que a criança termina por refutar o seio materno, mesmo estando com fome.
Insisto na continuidade do processo investigativo, questionando a mãe acerca do comportamento da criança a partir desta inferência (desmame), em situações específicas do cotidiano infantil, como manutenção do sono e alternativas a alimentação, por exemplo, abstendo-me neste momento, de referendar qualquer intervenção clínica afim de não interromper e/ou gerar qualquer resistência inconsciente que pudesse dificultar o relato.
A mãe afirma ter vivenciado extremas dificuldades para fazer com que a criança adormecesse. Sendo subjugada pelo cansaço e pela ausência de possibilidades outras, já fortemente incomodada pelo choro da criança que não conseguia dormir, a informante afirma ter colocado na boca da menina uma goma de mascar (chiclete), já mastigado e, portanto amolecido, para que mordendo, a criança dormisse. O fator principal que permitirá à criança a construção de uma imagem de si mesmo e do mundo procede das relações que se estabelecem entre mãe e filho. Esta relação privilegiada é chamada por Spitz de diálogo. Diz Spitz: “O diálogo é uma forma muito especial de interação que permite ao bebe transformar pouco a pouco, os estímulos sem significado em sinais significativos. Dialogar é estabelecer uma relação mútua e recíproca na qual mãe e filho são agentes ativos, que provocam com seus gestos a resposta do outro”.
Qual mensagem codificada é transmitida nesse diálogo silencioso de gestos entre mãe e filha? Que dizer é ofertado, que linguagem se inscreve nesta cena desvestida de palavras, mas repleta de significado? Para Fromm, a esfera mais importante do dar não se encontra nas coisas materiais, mas no domínio do especificamente humano. O que uma pessoa dá a outra? Dá a si mesma, o que não significa, necessariamente, dar a sua vida pelo outro, mas sim permitir que se estabeleça um laço afetivo, um vínculo onde possam ser compartilhadas todas as manifestações de vida que lhe são inerentes. O que esta mãe dá a sua filha? Ora, parece-nos plausível afirmar que na cena relatada se evidencia uma verdadeira troca, onde um mecanismo de satisfação dá lugar a outro, isto é, o sugar é substituído pelo mastigar/morder. Sabe-se que um sintoma, por mais estranhamente que se configure, reside sob uma história lógica, um traço eminentemente particular que o sujeito apreende, retira de um Outro e toma como seu a fim de auxiliá-lo a lidar com a frustração, ou seja, com a real, porém avassaladora insatisfação de seu desejo.
Os diversos acontecimentos que vivenciamos no decorrer de nossa vida determinam nossa percepção dos objetos, pois a estes, sempre está associado um afeto correspondente. Na constituição do sintoma, a representação penosa impossível de ser elaborada no momento é recalcada para o ICS e seu afeto é deslocado para uma zona do corpo, geralmente implicada na cena traumática. Não é gratuito, portanto, a eleição de Ana pela zona oral, pelo morder. Na eminência da dificuldade em verbalizar, externalizar os sentimentos e as emoções que a circundam, a criança lança mão da única possibilidade de expressão que consegue disponibilizar, isto é, diz de si através da configuração sintomática.
Por compreender a fundação do inconsciente como decorrente do campo do outro, através de seu desejo, e ao entender o sintoma na criança como uma formação metonímica dos conflitos parentais (produto de uma formação deslocada de seu inconsciente na relação com sua sexualidade reprimida), ou seja, quando, em detrimento do pulsional, o desejo do desejo do outro assume um caráter auto-traumático, pode-se compreender a lógica referendada pela criança na formação de seu sintoma, onde morder é retirar, arrancar do Outro o que lhe foi negado experenciar, uma tentativa desesperada de resgate do que se perdeu, do que não lhe foi dado.
É bem verdade que se dá aquilo que se tem, e na impossibilidade materna em se dar a sua filha, em acolhê-la em suas mais tenras demandas, instaura-se aí um sentimento de fracasso, de insuficiência, quase uma auto-marginalização que culmina na apreensão da criança deste vivido como traço identificatório, levando Ana a se posicionar e a se identificar com esse fracasso, com a impossibilidade de ser amada por não ser suficientemente boa, por não merecer, ou ainda por não possuir os atributos necessários. Se como postula Lacan, “Toda demanda é sempre uma demanda de amor”, é importante salientar, que o investimento agressivo vivido por Ana e direcionado às crianças entre 1 e 2 anos de idade inseridas na instituição educacional se dava portanto, como tentativa de resgate de um amor supostamente negado, perdido.
Ao tomar ciência desta premissa a partir da interpretação, nota-se clara mudança no âmbito das relações vivenciadas entre mãe e filha, de modo que a primeira ressignifica seu posicionamento subjetivo frente à criança, tornando-se mais solicita e mais disponível a Ana, diminuindo significativamente as investidas e falas pejorativas e culpabilizadoras.
É neste momento que se inicia efetivamente o processo analítico de Ana, que deixa emergir nas sessões que se seguem, toda uma bagagem de fantasias, significados e internalizações a respeito de sua conduta. Nas dramatizações realizadas com fantoches de personagens do universo fantástico infantil (bruxas, fadas, lobo mau, porquinhos...), é nítida sua predileção e identificação com os personagens transgressores, em especial a figura do lobo, que segundo relato da própria criança, é mau porque morde. Procura-se então, a partir do aporte oferecido pela ludoterapia de embasamento psicanalítico, mergulhar no mundo particular de Ana, viabilizando pelo intermédio do brincar, um diálogo reflexivo e prazeroso, investigativo, contudo estritamente acolhedor, no intuito de possibilitar a expressão e o entendimento dos afetos reprimidos.
Pontua-se à criança a possibilidade de existência de um lobo que não seja mau, mas que não saiba agir de outra forma e necessite de ajuda para poder criar outras estratégias de aproximação e interação. Questiona-se a aparente maldade da bruxa, que segundo a criança, é má porque não dá carinho (afirmativa direcionada a mãe), ressaltando a dualidade, a plasticidade existente nas ações humanas, atestando-se que ninguém é inteiramente bom ou mau, mas que ao ser requisitado em determinadas situações e na ausência de outras formas de atuações agimos de acordo com o que dispomos, sempre buscando junto à criança ampliar possibilidades de interpretação e ressignificação subjetiva.
Ana responde rapidamente ao tratamento analítico, tendo seu sintoma e seu sofrimento psíquico extintos em aproximadamente 6 sessões, podendo dar prosseguimento normal a sua vida escolar. Seu potencial de elaboração dos conteúdos inconscientes trabalhados mostrou-se notoriamente ágil, especialmente no que circunscreve a aceitação, isto é ao reconhecimento da castração materna (conseguir perceber que o Outro é um ser limitado, faltoso, implica em perceber e aceitar a sua própria limitação, isto é, descobrir-se enquanto ser submetido à lei) e que ser o ser da falta, é condição de existência humana e não um erro ou um fracasso. Reconhecer a castração significa situar-se em relação à própria ordem simbólica, pois ao confrontar-se com essa falta a ser, o sujeito se submete à supremacia da impotência que é a condição humana por excelência, já que do ponto de vista da psicanálise, para desejar é necessário que haja falta.
Referências Bibliográficas
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